03 janeiro, 2007

A história de Carmolina



O rosto enrrugado mais parece um chão árido, riscado pelos sulcos da experiência, mas os olhos de Carmolina Maria da Conceição revelam alegria. Com seu chapeuzinho estilo "cata-ovo", há 10 anos a senhorinha magra e curvada, de 75 anos, se escora sobre uma única muleta no semáforo da Rua Sacramento com Orosimbo Maia, no centro de Campinas, vendendo balas, chicletes e cultivando amizades.
Dona Carmolina, como é chamada por quem já a conhece de longa data, se transformou em uma espécie de marco daquela rua. Das 8 às 11h, de segunda a sábado, a aposentada está lá, a postos, para vencer mais um dia. Domingo, sua folga, é dia de lavar roupa e "varrer o terreiro".
Muita gente conversa com Carmolina ao passar pela Sacramento, mas pouca gente sabe que ela é de Alagoas, da cidade da Atalaia, que perdeu a conta dos filhos, netos, bisnetos e tataranetos e que anda de muletas porque sofreu um grave acidente quando ainda trabalhava como florista perto do Largo do Rosário. "Eu fui toda remendada, fiquei praticamente morta. Minha perna e meu braço nunca mais sararam", conta a vendedora de balas que, como fisioterapia para as mãos, aperta plástico com bolinhas até que o semáforo fique vermelho. Com aquela aparência tão frágil, escondida embaixo de blusas de lã, e que só se revela nos pés nus em um par de chinelos inseparável, Carmolina adora dançar forró e tem medo de ter que parar de trabalhar. "Em casa eu só fico doente e na rua eu me divirto, danço, faço amigos, brinco com o freguês e ele brinca comigo", diz, arriscando uns passos de dança abraçada à muleta.
Para começo de conversa, ela diz que tem dois filhos. Depois três. E depois de meia hora já começa a citar filhos em Recife, no Mato Grosso, perde o fio da meada. Mas lembra que chegou a Campinas há 36 anos e que, aqui ficou dormindo em praça, embaixo de árvore, até conseguir alguma ajuda. "Eu comia cabeça de peixe e cheguei até a conversar com ´estaltua`", brinca. Fazendo um bico aqui e ali, vendendo flores, ela conseguiu construir sua casinha no Jardim Santa Lúcia, onde mora até hoje com os dois netos que, segundo ela, estão estudando, porque para ela, que não sabe ler, estudar é importante.
É tão conversadeira que sem que se pergunte muito ela conta que já viu de tudo nessa vida, até lobisomem. Sim, ela garante que foi atacada por um lobisomem, quando ainda estava na roça, em Atalaia, descascando mandioca, que para a alagoana é macaxeira. Ela não só conta o episódio, como faz as vezes de lobisomem na interpretação e descreve o bicho. "Ele tem o ´zóio´ de carneiro, mão peluda, parece um cão".
Ôpa, pausa na conversa para ela vender um chiclete. A mãe de um garoto, ao volante, faz a compra e Carmolina agradece com um sorriso acanhado. Quando volta a conversar, diz que todo mundo que passa ali é "gente boa" e a ajuda.
E para quem se apressa em ficar com pena de uma senhora que, na terceira idade, fica na batalha por um dinheiro suado, debaixo de sol, ela se apressa em dizer com seu sotaque alagoano cheio de música: "Vou ficar aqui até quando agüentar".

4 comentários:

Unknown disse...

Lindo, Lígia! Fazia tempo que queria ler seu texto sobre essa mulher! Ah, linkei seu blog no meu, seus acessos vão aumentar um pouquinho. E uma sugestão: quando for publicar fotos, escolha a opção "pequena" para dar uma resolução melhor na imagem. "Média" também fica bom, dependendo do tamanho da foto. Parabéns!

Lígia Moreli disse...

Bruno - Valeu pelas dicas, aos poucos vou melhorando. Ainda tô apanhando disso aqui. Preciso aprender a também linkar o meu blog com o seu e com outros. Ainda não sei fazer isso, mas vou aprender.

Silo - não li o seu blog! Sintonia fina é? Vou ler. É que ontem não parei e fiquei sem computador.

Anônimo disse...

adorei o texto! parabéns!

Anônimo disse...

Campinas perde uma excelente repórter, que escreve com paixão e emoção, conta histórias, como o bom jornalismo deve ser. O jornal perde em qualidade, por não saber valorizar e entender. Cuide-se.
Ronaldo Faria