18 outubro, 2007

Uma bela personagem em uma bela entrevista

Tomo a liberdade de reproduzir aqui uma belíssima entrevista do meu amigo, escritor, compositor e jornalista Bruno Ribeiro, com a diva Elza Soares, da qual sou fã inconteste. A entrevista, que conseguiu fugir do óbvio de só falar do caso tórrido da cantora e do famoso jogador de futebol, foi publicada hoje no jornal Correio Popular, de Campinas, mas eu resolvi compartilhá-la aqui também, neste meu espaço, com os amigos que por ventura não a tenham lido.
Salve Bruno Ribeiro! E salve Elza Soares!

A menina Elza casou aos 12 anos de idade e aos 13 já era mãe. E foi para salvar a vida do filho que acabou se tornando cantora. A "pretinha favelada e desnutrida", como ela se via na época, gostava de cantar enquanto descia e subia o morro com a lata d’água na cabeça. Nunca, porém, havia encarado uma platéia. A estréia foi no programa de calouros do temido Ary Barroso. O apresentador, ao vê-la metida em trapos diante do microfone, debochou: "De que planeta você veio?". A resposta soou como um tapa na cara e entrou para a antologia da música brasileira: "Eu vim do planeta fome".

Apesar de se sentir humilhada, Elza cantou, encantou e saiu consagrada do programa. Levou o prêmio máximo. Com o dinheiro, andou de táxi pela primeira vez e comprou o remédio que o filho pequeno necessitava. "Ele teria morrido se eu não me inscrevesse no programa", contou a cantora, em entrevista exclusiva ao Caderno C, horas antes do show de lançamento do DVD Beba-me (Biscoito Fino, 2007), em São Paulo. Ainda se recuperando de uma diverticulite que quase a matou, falar do passado não lhe faz bem. "Minha vida foi uma seqüência de tragédias intercaladas por breves períodos de paz. Se eu ficar relembrando o que passou, morro de tristeza", afirmou.

Dona de um registro vocal único, com uma rouquidão jazzística que rendeu-lhe até comparações com Louis Armstrong – um de seus ídolos –, Elza Soares foi eleita em 2000 a "Cantora do Milênio" pela BBC de Londres. No Brasil, a repercussão da premiação foi modesta, longe de estar à altura de sua importância como intérprete da MPB. Nascida na favela carioca de Água Santa (Padre Miguel), Elza foi a primeira mulher na música a chamar a atenção para a questão do preconceito racial no Brasil. "Eu era negra na cor e negra na pobreza; de tanto apanhar, acordei para o fato".

Elza foi casada com o jogador de futebol Mané Garrincha (1933 – 1983), com quem viveu ao longo de 17 anos. Apesar de conturbada, a relação só acabou com a morte do craque, vítima do alcoolismo. Ela era apaixonada por Garrincha, com quem teve um filho. O longo período de depressão pela perda de seus dois amores – o marido e o filho, morto anos depois do pai, num acidente automobilístico, quase a afastou definitivamente dos palcos. Sua biografia Cantando para não Enlouquecer (Ed. Globo), escrita com a ajuda de José Louzeiro, foi uma espécie de expurgo que a recolocou em cena.

A grande volta, porém, aconteceria somente em meados da década de 90, quando a cantora é convidada a dividir com Caetano Veloso a faixa Língua, no álbum Livro. Ao longo de uma carreira quase tão longeva quanto seu tempo de vida – ela não confirma, mas alguns registros apontam que ela estaria com 70 anos – Elza Soares imortalizou sambas antológicos como Mulata Assanhada (Ataulpho Alves), Devagar com a louça (Haroldo Barbosa/ Luiz Reis), Máscara Negra (Zé Kéti), Pranto Livre (Everaldo da Viola/ Dida) e Malandro (Jorge Aragão), dando à eles sua gravação definitiva.

Agência Anhangüera – Você passou por delicada cirurgia e saiu do hospital direto para o show de gravação do DVD. Não teve medo de ter complicações de saúde?

Elza Soares – Eu estava enlouquecendo naquela cama de hospital. Não podia mais adiar a gravação do DVD, aquilo estava me agoniando. Essa não foi a primeira vez que desobedeci ordens médicas. Quando fui receber o prêmio da BBC de Londres (Elza foi eleita a cantora do milênio em 2000), estava usando um colete para deixar a coluna ereta, pois sofri uma queda no Metropolitan e havia fraturado várias vértebras. Mas tirei o colete e cantei assim mesmo, morrendo de dor. Não sou mulher de ficar em hospital, sou muito agitada.

Você foi convidada a cantar o Hino Nacional na abertura dos jogos pan-americanos. Como estava se sentindo nesse dia?

Ainda não havia me recuperado da operação e estava toda enfaixada por baixo da roupa. Mas, apesar do sofrimento físico, a felicidade era imensa. Cantei o Hino como se fosse uma oração. Levo muito à sério essa coisa de patriotismo. Eu não estava lá por diversão ou cachê.

O que mudou em sua vida depois de ver a morte de perto?

Não sou exatamente uma pessoa religiosa, mas acredito em tudo e tenho visões. Nasci com o dom de enxergar coisas e tenho sonhos premonitórios também. A única coisa que mudou é que passei a prestar mais atenção nos sinais que Papai do Céu me dá. Fiquei um pouco mais intuitiva.

É verdade que você decidiu escrever um livro sobre sua vida depois de ter tido um sonho? Como foi isso?

Às vezes acontece de eu sonhar com pessoas que morreram há muito tempo. No final dos anos 80 eu estava na pior, cheia de problemas pessoais. Foi quando sonhei com o (escritor) Artur Azevedo. Não sabia quem era, nem nunca havia lido um livro dele. No sonho ele disse que queria me ajudar, mas que para isso eu tinha de publicar minha história. Contei o lance para o (jornalista) José Louzeiro. Ele então me mostrou uma foto do Artur Azevedo e perguntou se era o homem do sonho. Fiquei de cara, porque era o próprio! Aí começamos, eu e Louzeiro, a escrever a biografia.

Recentemente você criticou a maneira como a mídia trata os negros, no Brasil. O preconceito racial continua o mesmo de quando você começou a cantar?

Infelizmente sim. O preconceito brasileiro é o pior de todos, porque é dissimulado. E, para piorar, se você não tem dinheiro, é negro duas vezes. Só o Pelé acha que não existe racismo no Brasil. Aliás, o Pelé nunca achou nada, né? Ele nunca teve opinião sobre coisa alguma. Acho triste isso. Porque o negro brasileiro acaba abaixando a cabeça. Estamos precisando de um líder como José do Patrocínio, como Luiz Gama... O Pelé poderia ser esse líder. Eu não sou nada. Quando me dão espaço para falar, eu falo. Mas a mídia só quer saber do meu casamento com o Mané (Garrincha).

Você sente o preconceito na pele, mesmo sendo uma artista famosa?

Sofro menos preconceito do que antes, mas ainda passo por situações constrangedoras. Tipo ser barrada no elevador social, na piscina do hotel... Mas, ainda que não sofresse diretamente na pele, me sentiria agredida por não me ver na televisão. Não há atores negros nas novelas! Você pode dizer: ‘Ah, mas tem a Taís Araújo, tem o Lázaro Ramos...’ Mas eles são exceções! Quantas negras fizeram o papel da mocinha nas novelas? Nós só servimos para interpretar escrava, empregada ou mãe-de-santo. Nós ajudamos a construir esse País, mas o reconhecimento é zero!

Quando foi que você descobriu que havia nascido para cantar?

Foi aos 13 anos de idade, no programa de calouros do Ary Barroso, na Rádio Tupi. Quando me inscrevi, a exigência da produção era que eu fosse bem vestida. Na inocência de criança, peguei a saia da mãe e fui espetando alfinetes no pano que sobrava. Na época eu pesava uns trinta quilos, era uma menina desnutrida da favela e parecia um E.T. com aquela roupa. Fui porque precisava ganhar o prêmio do programa. Eu já tinha um filho e ele estava necessitando de remédio e comida.

Você já tinha encarado uma platéia antes? O que sentiu naquela hora?

Eu nunca havia cantado para ninguém! Eu cantava quando subia o morro, com a lata d’água na cabeça. Tudo era inédito para mim. Quando Ary Barroso chamou meu nome, subi no palco toda tímida e fui andando na direção dele. Aí aconteceu de o público apontar para mim e cair na gargalhada. Todo mundo rindo, vaiando e apontando na minha direção. Não sabia onde enfiar a cara, mas continuei andando.

E qual foi a reação do Ary Barroso?

Ele também começou a rir, sentado ao piano. E eu parada na frente dele, dura, sem olhar para os lados. Fiquei esperando ele me chamar de "minha filha", como costumava fazer com todas. Mas em vez disso ele perguntou bem seco: "O que é que você veio fazer aqui?". Eu disse: "Eu vim cantar". Ele pigarreou e perguntou de novo: "Mas me diga uma coisa, de que planeta você veio?". Então devolvi na mesma moeda: "Eu vim do planeta fome, Seu Ary". Aí ficou aquele silêncio no auditório...

E como foi sua apresentação? Você estava nervosa?

Depois da resposta, me senti poderosa. Quando a banda começou a tocar a música (Elza interpretou Lama), o maestro errou e botou um tom acima do que havia ensaiado. Não me desesperei e subi o tom, como se nada tivesse acontecido. Todo mundo ficou espantado, tentando entender como aquela menina magrinha podia cantar tão alto. Quando terminei, fui aplaudida de pé. Nunca senti tanto ódio na minha vida. Eu não queria mais o aplauso daquelas pessoas. Foi a primeira lição que a vida me deu sobre hipocrisia.

E você ganhou o prêmio máximo?

Ganhei nota cinco, que era a nota mais alta. O Ary Barroso não resistiu e me abraçou de um jeito meio paternal, como pedindo desculpas pela pergunta que tinha me feito. Me virou de frente para o auditório e disse: "Senhoras e senhores, acaba de nascer uma estrela". Aí me debulhei em lágrimas. Tirei o primeiro lugar e levei o dinheiro para casa. Não lembro quanto foi, mas deu até para voltar de táxi. Na época esse dinheiro salvou a vida do meu filhinho. Foi a primeira vez que me senti uma cantora de verdade.

Embora seja vista como cantora de samba, você nunca gostou de ser associada à um único gênero musical e chegou até a cantar rock, nos anos 80. O que é a música popular brasileira na sua opinião?

A música brasileira é uma pedra bruta que ainda não foi lapidada. O samba é muito recente, comemorou seu centenário agora. O que dizer do que veio depois dele? Tudo é muito novo, o Brasil é muito novo, estamos aprendendo a nos descobrir... Acho que tudo é permitido na MPB. Até o rock. Mas o problema é achar que só o pop rock é moderno e jovem. Isso é besteira. O Brasil está pop rock demais e isso me dá um certo medo.

Discografia básica

Se Acaso Você Chegasse (Odeon, 1960)

A Bossa Negra (Odeon, 1961)

Com A Bola Branca (Odeon, 1966)

Elza, Carnaval & Samba (Odeon, 1969)

Elza Pede Passagem (Odeon, 1972 )

Negra Elza, Elza Negra (CBS, 1980)

Somos Todos Iguais (Som Livre, 1985)

Trajetória (Universal, 1997)

Carioca Da Gema (Luna, 1999)

Do Cóccix Até O Pescoço (Maianga, 2002)

Vivo Feliz (Tratore 2004)

Beba-me (Biscoito Fino, 2007)

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