09 fevereiro, 2010

O piano

Peço licença para reproduzir, aqui neste espaço, uma crônica de Antonio Prata, publicada no Estadão na edição de segunda-feira, dia 08, que eu assinaria tranquilamente e que tem muito a ver com muito do que eu penso, com os meus conflitos que eu tanto descrevo neste blog...


Aos 17 anos eu sonhava com um mundo onde ninguém, em hipótese alguma, falasse sobre o tempo. Escrevia contos em que um sujeito mal terminava de pronunciar "que chuva, hein?", e um piano se estraçalhava sobre sua cabeça. Se algum idealismo eu já tive, foi esse: tornar-mo-nos adultos sem nos entregar à comodidade do lugar comum, viver a vida sem embolorá-la no mormaço do dia a dia.

Para quem não acredita em Deus, como eu, abandonar a infância implica na incontornável convivência com o absurdo. Que da água e dos minerais tenham surgido protozoários, cachalotes, eu e você, não é o mais lógico dos acontecimentos. Que muitas relações sexuais de seu pai e sua mãe, justamente naquela lá um óvulo tenha sido fecundado e dado início à sua existência - que sorte, não? (quantos possíveis eus não terminaram em absorventes íntimos ou lenços de papel, no fundo de uma lata de lixo?).

A falta de sentido não me levava, contudo, ao niilismo. Pelo contrário. Já que era tão improvável estarmos aqui, tudo era valioso, e, fundamentalmente, engraçado. Não tive um Deus para ordenar-me a realidade, mas as piscadelas cúmplices de Julio Cortázar, Woody Allen, Campos de Carvalho, Monty Python e outros artistas, de dentro de seus livros e filmes, tornaram mais fácil a aceitação e mais intensa a fruição dessa maravilhosa barca furada.

O que mais me angustiava na adolescência não era, portanto, a percepção do absurdo, mas como os adultos pareciam não se dar conta da estupenda improbabilidade de estarmos aqui por esse breve período, tendo ao nosso dispor o sexo, o baião, o bife de chorizo e- mais recentemente, que maravilha! - as cervejas artesanais. Eu os observava comentando a reforma da portaria do prédio ou aflitos com parcelas do sofá e desejava que aquele piano caísse dos céus: a vida passava e eles não se davam conta.

Semana passada, quando soube da morte de J.D. Sallinger, reli O apanhador no campo de centeio. A história de Holden Caultfield tocou-me mais do que da primeira vez que li, aos 14. Talvez porque agora o adolescente revoltado com a falta de sentido da vida e a hipocrisia dos adultos não tenha encontrado em mim um cúmplice, mas um inimigo. Hoje, aos 32 anos, quando se fecha a porta do elevador e o silêncio toma aqueles 3m2, viro para o vizinho e digo: que chuva, hein? Tenho trabalhado muito, me afligido com contas e faz tempo que não faço um jantar para o meu amor. É preciso abrir os olhos, enquanto é tempo. Para isso servem os livros, para caírem sobre nossas cabeças como pianos e estraçalharem, mesmo que temporariamente,tudo o que não for fundamental.
Obrigado e adeus, meu caro Sallinger.


Escrevo esse texto lembrando, mais uma vez, do meu amigo Bruno Ribeiro, que me emprestou O apanhador no campo de centeio quando estávamos na faculdade de jornalismo e que, assim como eu, vê muito mais da vida.
Dedico esse post também ao ser humano incrível que hoje eu tenho a felicidade de ter ao meu lado, e que tem me feito enxergar muitas coisas fundamentais em mim e na vida. Um beijo, Edu.

3 comentários:

Unknown disse...

Obrigado, Ligia, pela parte que me cabe neste teu latifúndio virtual. Beijão!

Eduardo disse...

Olha, nominal assim é a primeira vez... Depois de tantas entrelinhas sou promovido à citação pública.
Um beijo minha linda.

Mari disse...

Olha, que lindo! Agradeço pela referência ao meu namorado tão querido e especial, e pela forma tão profunda como falou do meu grande amigo, Dudu! Os dois são, com certeza, grandes pessoas, e somos pessoas de muita sorte!
Felicidades aos dois, torço por essa relação!
Beijo.