23 abril, 2010

O dia em que Hermeto Pascoal chorou

Era uma quarta-feira à tarde, uma quarta-feira quente e o lugar era uma sede de uma banda, dessas bandas de coreto. A cidade era Sorocaba e o ano era 2003. Havia descoberto o som de Hermeto Pascoal há pouco, estava furando o CD "Mundo Verde Esperança" de tanto repetí-lo. Minha mente, sempre muito ligada em música, havia se aberto de maneira excepcional. Fui assistir ao ensaio de uma orquestra que então se formava. Um grupo de pessoas que a partir de uma oficina de ritmos brasileiros, formada paralelamente aos cursos de música popular do conservatório de Tatuí, decidiu formar um grupo. O líder, um jovem pianista e compositor que começara a tocar com Hermeto Pascoal aos 18 anos, na década de 90. No ensaio chamou-me atenção a formação da orquestra. Violinos, dois bateristas e dois baixistas se revezando, 4 sopros, o requinte de ter 4, sim QUATRO guitarras, piano, acordeon, percussão, gaita, bandolim e voz. Sim, voz como instrumento. A música que ouvi neste ensaio foi uma balada chamada Coração Distante, que na época acho que nem tinha esse nome ainda. Os músicos chamavam as músicas por arranjo 1, 2, 3 e assim por diante. Sim, porque as músicas iam tomando forma ali nos ensaios. Parecia tudo uma grande brincadeira sem pretensão de ser uma peça musical, mas uma brincadeira bem séria. Sem partitura nenhuma, cada um guardando o trecho que lhe cabia, como no teatro cada ator aprende sua fala e espera a deixa certa para entrar em cena. E no comando, o tal pianista, André Marques, um baixinho um tanto quanto tímido, mas genial. Fiquei simplesmente encantada com aquilo, em como o som era vibrante, diferente, emocionante, orgânico. Minha porção musicista automaticamente quis saltar para fora de mim, fazer parte de tudo aquilo. Dava vontade de também sair tocando alguma coisa. E o que me chamou atenção, desde o início, era como todos aqueles jovens músicos, todos muito jovens, vibravam e se divertiam tocando. A diversão deles era um show à parte naquela coisa toda.
Pois bem. Vi também o primeiro show que esse grupo, que passou a se chamar Vintena Brasileira, realizou. E tive a sorte de poder participar um pouquinho da produção desse primeiro show. Foi na minha cidade natal, Mogi Guaçu, no Teatro Tupec. Foi o primeiro "teste" de público, foi a primeira vez que o som foi mostrado mesmo para uma platéia. E que experiência inesquecível! Nem sei se eles se lembram disso, mas eu guardo com muito carinho essa lembrança. E tenho certeza que o público que estava lá também guarda.
Eles se apresentaram outras várias vezes, os arranjos foram crescendo, tomando corpo, a orquestra foi ficando cada vez melhor, mais cincada, como dizemos em música para denominar a situação em que os músicos estão tocando juntos, em sintonia total, dialogando na mesma língua, todos. Apaixonei-me tanto pelo som que, ainda que não tenha letra, decorei todas as músicas do primeiro CD do grupo e me pego cantarolando.
Passemos agora para o dia 21 de abril. Dia de Tiradentes. Feriado. No Teatro do SESC Vila Mariana, o criador encontra suas criaturas. Assistir, ver, ouvir Hermeto Pascoal é sempre uma experiência única. Mas o que eu não suspeitava é que assistiria ao Grande Mestre, o Campeão, chorando. Depois de ouvir os arranjos da Vintena, Hermeto, convidado especial do show da orquestra entra no palco e chora ao microfone, no que automaticamente todos os músicos marejam os olhos. Hermeto Pascoal chora ao constatar que, aos 73 anos, influenciou, influencia, e continuará influenciando gerações de músicos. Não faço parte da orquestra, mas nestes anos todos acompanhando o pessoal, mantendo uma relação de amizade e de profunda admiração pelo trabalho ali desenvolvido, me senti orgulhosa por estar ali presenciando esse momento que, tenho certeza, foi histórico na vida de cada um daqueles instrumentistas e também da orquestra. O que se mostrou ali é que música está além das notas e que os melhores músicos e instrumentistas são os que conseguem captar isso.
Esta mesma orquestra, sobrevive a duras penas há anos, alternando os locais de ensaio entre sedes de bandas municipais, sindicatos, escolas, botecos e até no quintal apertado da casa de algum dos músicos. Conheço e convivi com músicos que literalmente pagavam e pagam para estar todas as semanas em Sorocaba, ensaiando, se aprimorando e se esforçando para manter viva essa música. Infelizmente é pouco provável que algum destes talentos se torne rico um dia. Mas tenho certeza também de que é para poucos a sensação de fazer aquela música, como também foi único proporcionar tamanha emoção a ponto de fazer o maior, o campeão Hermeto Pascoal, simplesmente, chorar.

Quem ainda não ouviu, está perdendo tempo. Conheçam: www.vintenabrasileira.com

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