21 março, 2008

Ah, porque choras sax tanto assim?

Os bigodes eram quase que cortinas por sobre a boca-palco de notas, não sei também se de palavras. Uma boina na cabeça, camisa e calça um tanto quanto surradas, mas impecavelmente passadas e combinando, numa cor escura que agora me falha na memória, um marrom avermelhado, talvez. Surrado também era seu instrumento, o saxofone companheiro, com o qual tentava ganhar o pão? Ou chamar atenção apenas? Ou derramar no seu choro sentido uma melodia que esvaziasse seu coração de algum desamor, ou amor demais? "Índia", era a música que tocava naquele dia que passei por ele, em uma esquina, tendo como acompanhante uma sinfonia de buzinas, e arrancadas de ônibus, e freadas de carros, e como cenário os transeuntes e as luzes dos faróis, holofotes tricolores: vermelho, depois amarelo, depois verde, depois vermelho de novo...Talvez tocasse qualquer coisa que pedissem só para ter uma audiência mais atenciosa, que aceitasse desligar os celulares, a pressa de chegar a algum lugar ou voltar para casa...Ou talvez, quem sabe, aquela fosse a serenata que ele não teve coragem de fazer no endereço certo, e a fazia para um ser imaginário, talvez de cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar, como na letra da música. Devia ter uns 70 anos, ao menos na aparência. Talvez tenha tocado em alguma big band um dia, no alto de um praticável e, quando no solo principal, tenha sido ele o protagonista, ficando em pé e arrancando aplausos do público. Ou talvez tenha feito rodopiar os casais em uma gafieira qualquer, e lá tenha avistado a sua índia, da pele morena...Uma pessoa é uma charada, mais ainda quando não fala e sim toca. Sua música pode ter mil cores, mil sabores, amores, ou significar apenas uma melodia surrada para ganhar uns trocados em uma esquina qualquer de São Paulo. Passando apressada pelo homem com seu sax, lembrei-me do "Choro pro zé", do Guinga e do Aldir.."Ah, porque choras sax tanto assim?"

4 comentários:

Unknown disse...

Belíssimo texto!

Rodrigo disse...

Ligia, parabéns pelo o texto, sou fã desta música do Guinga e do Aldir. Fiquei feliz com o texto.

abraço

Unknown disse...

Que delícia de texto, Lígia!
Fiquei o tempo todo escutando ao fundo um som maravilhoso de um chorado sax...
Você sempre é um presente para os meus sentidos.
Beijo!

3rd World Dude disse...

Ah, peraí, eu acho que ele toca com os "Mortos?".