17 março, 2010

Música viva


Não tenho religião, mas se for para entender essa palavra como algo que nos faz transcender, sair do concreto e se deixar levar pelo inexplicável, então a música é a minha religião, mais do que isso, é meu transe. E talvez quando esse transe se manifeste mais forte é quando ouço a música universal de Hermeto Pascoal e tudo o que dela deriva. É assim quando vejo o próprio Campeão tocando com seu grupo, é assim quando ouço a Vintena Brasileira, criada pelo pianista André Marques, e é assim sempre que ouço a Itiberê Orquestra Família, que ontem eu tive novamente a oportunidade de ouvir. É como se a música transcendesse notas, partituras, conceitos, estudo, esforço, entendimento, melodia, fácil ou difícil assimilação, complexidade ou simplicidade, canção ou instrumental. Enfim,nada disso mais importa. É como se fosse possível enxergar a música como algo vivo, único, uma entidade em si mesma, com todo o seu colorido e toda a sua emoção. É inexplicável a reação que esse tipo de som me causa. Faz ter vontade de sair tocando minha flauta, sem me preocupar se está feio ou bonito, se tenho ou não técnica suficiente pra aquilo. É como se fosse possível pegar no instrumento e sair tocando. Sei que não é assim, mas parece que o som que sai daqueles músicos vem ao mundo de uma maneira tão fácil, e ao mesmo tempo tão intensa...
Para quem não conhece, a Itiberê Orquestra Família foi criada no Rio de Janeiro, há 10 anos, pelo contrabaixista do grupo de Hermeto Pascoal há 33 anos, Itiberê Zwarg. Formada por músicos jovens, meninos e meninas, já contou com quase 20 músicos e atualmente se apresenta com nove sendo quatro flautistas (que também cantam, tocam percussão, flautim, saxofone, etc), uma violinista (que também toca piano e percussão), um guitarrista (que também toca violão e viola caipira), um pianista (que também toca acordeon), o próprio Itiberê (que toca tudo) e o baterista (que também toca instrumentos de sopro). Em vez de partituras, os músicos tocam tudo decór (entendida a palavra em todos os sentidos, especialmente "de coração"). As músicas são criadas nos ensaios, bem comos os arranjos, e cada nota é transmitida na hora para cada músico ali presente, sem partitura. É um verdadeiro exercício de percepção musical. As partituras existentes são apenas para registro posterior das peças.
Eu assisti ao show de ontem assistindo também à reação das pessoas. O som era vigoroso, desconstruído, com harmonias pouco usuais, polirritmias mil, bem ao estilo Hermeto Pascoal. Várias pessoas ali podiam não estar "entendendo" nada e esperava-se que algumas, mais apegadas à ideia tradicional do que é música, pudessem ter levantado ao final dos primeiros 10 minutos. Mas não. O que se via era alegria e intensidade no rosto das pessoas. Era como se finalmente o mundo tivesse entendido que a arte, a música, está aí para ser sentida, não para ser entendida, e que isso não tem nada a ver com ser fácil ou ser difícil. A música existe por si. E por alguns momentos, é como se fosse possível tocá-la, em todos os sentidos.

2 comentários:

Gisele disse...

PERFEITO!..e por compartilhar da mesma devoção, peço permissão pra concluir com um pequeno texto do poeta Fernando Paixão.

"Chegará o dia em que os povos irão negar todas as religiões difundidas por meio das palavras. Vingarão apenas as seitas que se comunicarem em linguagem musical. Para falar em nome dos deuses, nada de sermões ou versículos. Apenas música-arte em que o som ganha sentido. Se você concorda com o argumento, entre. Pode se sentar. "

Anônimo disse...

Obrigada pela mensagem no meu blog, também me identifico muito contigo, sempre.
bjs.
Má F.