09 outubro, 2010

Mais estranho que a ficção

Sabe aquele filme em que o cara todo dia faz tudo igual, conta o número de escovadas de dente, chega sempre no mesmo milésimo de segundo ao ponto de ônibus e de repente se surpreende ao se deparar com outra vida sem regra alguma? Pois é. Às vezes a gente vive numa ficção e nem percebe. Talvez seja algo meio intrínseco a todo ser humano, mas o fato é que se pode caprichar na dose e chegar a tal ponto que, quando o cenário cai, você se vê perdido, achando tudo muito estranho, como se tivesse esquecido o texto.
Criança prodígio, será? Foi o que me falaram. Com 2 anos e é tão afinada. Histórias diferentes de infância, como da vez em que fiquei com um motorista de caminhão, quando tinha menos de 1 ano, enquanto meus pais cantavam o samba enredo de uma escola de samba. Ou quando dormia com a cabeça dentro do bumbo da bateria enquanto meu pai ensaiava em casa, e minha mãe dava aulas. Ou quando tinha 6 anos e comecei a cantar música de criança na banda de baile do meu pai em um hotel fazenda. Depois primeira aluna do quadro de notas da escola, vencedora do concurso de redação...Minha mãe lendo jornais, e revistas e livros, livros e livros, e falando de Noel, de Pixinguinha, falando apaixonada do Rio de Janeiro, lá sim que é cidade cultural, bonita, que tem história, queria morar lá, e tal. Meu pai tocando, compondo, ensaiando, falando pra todos o quanto eu cantava bem e tal e coisa. E eu me dividindo entre os discos do Trem da Alegria, da Xuxa, e Borzeguim do Tom Jobim, bolachões do Ivan Lins, do João Bosco e da Elis Regina, com vergonha de erguer a mão na escola pública de interior quando a professora perguntava se alguém conhecia Chico Buarque e ninguém se manifestava.
De uma certa forma desenvolvi uma persona e um mundo imaginário. Às vezes me via em situações ouvindo melodias internas, que só tocavam dentro de mim. Cresci sempre pensando que algo mágico pudesse acontecer, que eu não sabia muito bem o que, além do esqueminha escolha, casa, trabalho. Cresci querendo casar mas ao mesmo tempo só se eu pudesse ser uma mulher moderna, de destaque, uma cantora, uma super jornalista, uma apresentadora da TV Cultura - sempre quis trabalhar na TV Cultura, ou uma das backing vocals do Tom Jobim, ou então algo como a Elis Regina, como eu adoro Elis e como imitei Elis. Desenvolvi uma certa ojeriza por laços de fita, roupas de cor-de-rosa e feminilidade exacerbada, achando que tudo é sempre muito pouco e sempre pode ser mais. Cresci me achando mais especial do que o mundo e, mesmo sem querer, desprezando uma vida do tipo crescei-vos, multiplicai-vos e ganhais dinheiro para sobreviver e pagar o churrasco no final de semana e as viagens uma vez por ano. Cresci desprezando a vida real e sem entender o valor das coisas reais. Esqueci de aprender, ou não aprendi, a ter o prazer da convivência com os outros, a cuidar dos filhos, a olhar para o outro. Sempre olhei muito pra dentro de mim, sempre preocupada em encontrar um sentido outro para ir todos os dias ao mesmo lugar e trabalhar todo dia igual.
Talvez não tenha me tornado cantora porque não posso ser a Elis Regina. Ninguém pode. Talvez esteja deixando minha flauta de lado porque não consigo conceber a ideia de simplesmente tocar, sem ter que provar nada pra mim nem pra ninguém. Talvez tenha que fazer muito mais yoga para valorizar o momento, que é a única coisa que realmente permanece.
Aos 32 anos continuo me debatendo, com medo de sair da ficção e não achar graça na minha vida, uma vida que eu construí, com muita, muita fantasia, mas com um monte de coisa muito real, amores, trabalho, cachorros, a música, sempre a música. A pergunta que não me deixa em paz nunca é, como poderia ter sido se fosse tudo diferente?

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